Pandemia de Covid-19 traz impactos para a aplicação do ECA 17/07/2020 - 10:00

Desde meados de março, as crianças e os adolescentes paranaenses (e brasileiros, de modo geral) não vão mais à escola em função das necessárias medidas adotadas para conter a propagação do coronavírus. Com isso, meninos e meninas, junto com suas famílias, estão aprendendo a frequentar aulas num formato diferente, o on-line. Essa situação traz um primeiro desafio para a implementação de um importante direito previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que completou 30 anos nesta semana (13 de julho), que é a garantia de educação para todos, haja vista que muitos não têm acesso à internet ou computador para acessar os materiais disponibilizados.

Mas há outras questões preocupantes relacionadas à pandemia que representam ameaça para a efetivação da lei. Em casa, em situação de isolamento, aumentam os riscos de crianças e adolescentes sofrerem maus-tratos ou abuso sexual, sem que tenham o apoio da escola para denunciar tais situações ou identificar sinais que possibilitem a adoção de providências. A crise econômica, que acompanha a sanitária, também pode fazer com que mais crianças e adolescentes passem por privações e sejam conduzidas a trabalhar, o que pode prejudicar ainda mais o seu desenvolvimento sadio.

Para o procurador-geral de Justiça, Gilberto Giacoia, o momento atual, permeado de diversas dificuldades, exige esforço redobrado de toda a sociedade para a plena garantia dos direitos das crianças e adolescentes. “Já se disse: ‘Quando achamos que sabemos todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas’. Que essas novas perguntas formuladas pela vida sejam respondidas com gestos de amor, fraternidade e solidariedade àqueles que mais precisam da nossa atenção e dos nossos cuidados, como as crianças e os adolescentes.”, afirma.

Na última matéria desta série comemorativa aos 30 anos de sanção do Estatuto da Criança e do Adolescente (confira também o texto que fala dos avanços e outro que elenca os desafios contínuos do ECA), especialistas com ampla experiência na defesa dos direitos dessa parcela da população falam sobre os reflexos e desafios para a aplicação da lei neste período de pandemia.

Reorganização de órgãos

Passadas três décadas da sua promulgação, o Estatuto da Criança e do Adolescente ainda é visto como referência mundial na defesa dos direitos da infância e da adolescência. Mesmo assim, ele não está livre de atualizações e complementações. “Essas mudanças precisam ser constantes. Que lei poderia prever, por exemplo, tudo o que estamos vivendo neste cenário de pandemia de Covid-19?”, questiona o desembargador Fernando Bodziak, presidente do Conselho de Supervisão dos Juízos da Infância e da Juventude do Tribunal de Justiça do Paraná.

Nesse cenário, ele conta que todos que trabalham com a defesa dos direitos da infância e da adolescência tiveram que se reorganizar para enfrentar os desafios trazidos por essa crise sanitária, inclusive para meninos e meninas institucionalizados. “Unimos esforços do Tribunal de Justiça, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da Ordem dos Advogados, das Secretarias de Estado, enfim, de vários órgãos e pessoas para tentar minorar as dificuldades do momento. Nós nos organizamos em comitês para possibilitar a adoção de providências de modo mais rápido e efetivo, com o intuito de evitar a contaminação das crianças e adolescentes acolhidos”, explica. Com esse propósito, foram criados o Comitê Interinstitucional Protetivo (para acompanhamento das medidas de prevenção à Covid-19 no sistema protetivo de crianças e adolescentes inseridos em serviços de acolhimento institucional ou familiar e vítimas de violências) e o Comitê Interinstitucional de Acompanhamento das Medidas Preventivas à Pandemia da Covid-19 no âmbito da Socioeducação.

Risco de maus-tratos e abusos sexuais

No atual contexto, o desembargador Bodziak diz que todos precisam estar atentos também para a situação das crianças e adolescentes que estão em isolamento em suas casas e podem estar mais sujeitos a outros riscos, como de agressões e abusos sexuais. As dificuldades para isso são enormes, já que, em função do isolamento e do distanciamento social, é difícil fazer a comprovação das violências, que geralmente acontecem dentro das casas das vítimas. Por isso, neste momento, todos que atuam em favor da infância e da juventude precisam redobrar os cuidados.

A advogada Marta Tonin cita um relatório da organização não-governamental (ONG) World Vision, que estima que até 85 milhões de crianças e adolescentes com idade entre 2 e 17 anos poderão se somar às vítimas de violência física, emocional e sexual nos próximos três meses em todo o planeta. “O confinamento em casa, essencial para conter a pandemia do novo coronavírus, acaba expondo essa população a uma maior incidência de violência doméstica. No caso do Brasil, a projeção é de um aumento de 18% no número de denúncias de violência doméstica”, informa, citando reportagem da Agência Brasil.

Do mesmo modo, a presidente do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente do Paraná, Angela Mendonça, defende que o maior desafio desta fase é justamente fazer com que crianças e adolescentes estejam mais ligados aos serviços e unidades de atendimento, quer seja a escola, unidades de saúde ou unidades da assistência social, para que, com a “reclusão”, grande parte das violências e dificuldades não sejam tão invisibilizadas.

Ciente do problema, desde maio, quando ocorre o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes (18 de maio), o Ministério Público do Paraná vem destacando a importância do papel de vizinhos e outras pessoas que possam observar agressões e violações neste período de isolamento, cumprindo o papel de protetores de crianças e adolescentes. No Paraná, os comunicados de ocorrências (suspeitas ou comprovadas) devem ser feitos principalmente pelo Disque 181 (estadual) e pelo Disque 100 (nacional).

Educação

A educação remota é outra grande barreira a ser superada para o exercício dos direitos de crianças e adolescentes neste momento ímpar que o Brasil e o mundo enfrentam. Para Angela Mendonça, essa é uma questão importante porque mostra a desigualdade educacional e de acesso à tecnologia no Brasil, que precisa ser um ponto de inclusão nos debates das políticas para crianças e adolescentes não apenas neste momento específico, mas de forma perene.

Dificuldades financeiras e trabalho infantil

O desembargador Fernando Bodziak lembra ainda que, especialmente neste período, muitas crianças e adolescentes estão passando por dificuldades decorrentes da instabilidade financeira e social, junto com suas famílias. O procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos do Ministério Público do Paraná, diz que as políticas emergenciais que estão sendo estabelecidas pelos governos nos três níveis devem priorizar o atendimento às crianças e adolescentes, especialmente aquelas que já experimentam situação de vulnerabilidade familiar e social.

Dentro desse contexto, outro perigo que cresce é o do trabalho infantil. Por esse motivo, neste ano, o aumento do risco de exploração do trabalho de crianças e adolescentes em decorrência da pandemia de Covid-19 foi o foco da campanha nacional contra o trabalho infantil, realizada em junho por Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Com o slogan “Covid-19: agora mais do que nunca, protejam crianças e adolescentes do trabalho infantil”, a iniciativa alinhou-se à proposta global da OIT. O objetivo foi conscientizar a sociedade e o Estado sobre a necessidade de maior proteção a essa parcela da população, com o aprimoramento de medidas de prevenção e combate ao trabalho infantil, em especial diante da vulnerabilidade socioeconômica resultante da crise provocada pelo coronavírus.  

Apoio psicológico

Vários profissionais têm alertado para o risco de depressão e outros problemas psicológicos decorrentes do longo período de isolamento. Entre crianças e, sobretudo, entre os adolescentes, esse perigo pode ser ainda maior. “Crianças e adolescentes são naturalmente seres humanos que precisam e gostam de interagir com outras pessoas, seja na vida social, familiar ou escolar”, comenta o promotor de Justiça Júlio Ribeiro de Campos Neto, que atua na área da infância e da adolescência em União da Vitória. Ele comenta que durante o período de pandemia já foi possível aferir um aumento na procura de serviços de apoio terapêutico e psicológico para crianças e adolescentes, sendo necessário que eles estejam preparados para receber essa demanda com as ferramentas possíveis.

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